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Dario era reserva no time formado por (da esq. para a dir.) Valdir, Servilio, Julinho, Valdemar Carabina, Ademir da Guia, Djalma Dias, Djalma Santos, Rinaldo, Ferrari, Dudu e Tupãzinho (Acervo Histórico/Palmeiras)

Há 55 anos, pela primeira vez na história do futebol, a Seleção Brasileira foi totalmente composta por integrantes de um único clube. Em 7 de setembro de 1965, Dia da Independência do Brasil, o Palmeiras teve a honra de representar o país na inauguração do Mineirão contra a poderosa Seleção Uruguaia e saiu de campo com uma imponente vitória por 3 a 0. Era a coroação da equipe eternizada como Academia de Futebol (e como Primeira Academia, quando, anos depois, surgiu a segunda geração de craques). Naquele capítulo emblemático da trajetória alviverde, estavam toda a comissão técnica e jogadores do elenco. Inclusive o ponta reserva Dario Alegria.

Mas se em Belo Horizonte o momento foi de felicidade, em Porto Alegre (RS) Dario Alegria viveu o mais triste episódio de sua vitoriosa passagem de dois anos e meio pelo Palmeiras. O Verdão acabara de fazer o segundo gol em um jogo importante contra o Internacional e, ao notar que os zagueiros palestrinos ainda comemoravam, o atacante permaneceu no campo adversário para retardar o reinício da partida, permitindo assim que a defesa se reposicionasse. Em vez de advertir o palmeirense pela malandragem, o árbitro (cujo nome o ex-jogador prefere omitir) o castigou com a crueldade do racismo.

“Ele falou assim para mim: ‘Sai daí, negro vagabundo!’ Aquelas palavras me machucaram muito”, relembra. “Quando o jogo acabou, passei no vestiário, mas nem banho tomei; peguei um táxi e fui para o nosso hotel, onde o juiz também estava hospedado. Fiquei na recepção, esperando pelo sujeito, mas acho que ele me viu e entrou por outra porta. Não ia brigar, só queria deixar claro o quanto me orgulho da minha origem.”

Neto de escravo, filho de garimpeiro e primo do ex-ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, Dario passou parte da infância no quilombo Muriti do Costa, em Paracatu, na região noroeste de Minas Gerais. Entre os séculos XVII e XIX, os quilombos eram comunidades onde se refugiavam os escravos africanos que conseguiam escapar.

Dario com o primo Joaquim Barbosa, ex-presidente do STF

Diferentemente do avô, Dario nasceu livre, o que não o impediu de sentir as consequências do regime escravocrata, encerrado tardiamente no Brasil com a promulgação da Lei da Áurea, em 1888. De família humilde, ele ainda era um garoto quando precisou sair de casa para trabalhar na construção civil. As pernas velozes e o faro de gol, contudo, mudaram o seu destino. E quando chegou ao Verdão em 1965, o atacante fez parte de um dos maiores times da história do futebol nacional: a Academia.

Dario (agachado) com Santos, Picasso e Gildo no jogo em que o Palmeiras representou a Seleção, há 55 anos (Acervo Histórico/Palmeiras)

Nesta entrevista à edição 55 da Revista Palmeiras (produto digital exclusivo Avanti que está com conteúdo aberto a todos os torcedores por tempo limitado – baixe agora mesmo o App Revista Palmeiras na Play Store ou na Apple Store), Dario rememorou sua surpreendente trajetória dentro e fora de campo, falou sobre a importância da luta contra o racismo e contou histórias daquela inesquecível equipe que, há exatos 55 anos, derrotou o Uruguai com a camisa amarelinha.

BRASIL (PALMEIRAS) 3 x 0 URUGUAI

Data: 07/09/1965
Local: Estádio Magalhães Pinto, em Belo Horizonte (MG)
Gols: Rinaldo, Tupãzinho e Germano.
Árbitro: Eunápio de Queiroz
Público: 44.984 pessoas
Renda: Cr$ 49.162.125,00

Brasil [Palmeiras]: Valdir de Moraes (Picasso); Djalma Santos, Djalma Dias,  Valdemar Carabina (Procópio) e Ferrari; Dudu (Zequinha) e  Ademir da Guia; Julinho (Germano), Servílio, Tupãzinho (Ademar Pantera) e Rinaldo (Dario).

Uruguai: Taibo (Fogni); Cincunegui (Brito), Manicera, Varela e Caetano; Nuñes (Lorda) e Dorksas; Franco, Silva (Vingile), Salva e Espárrago (Morales)

Como foi a sua infância no quilombo?

Dario Alegria: Foi uma infância de muita dificuldade, como a da maioria dos negros. Paracatu nasceu sob o chamado Ciclo do Ouro. Até hoje, grandes indústrias se estabelecem na cidade para trabalhar na extração do ouro. Durante o período do reinado, muitos escravos negros foram trazidos para cá, tanto que mais de 70% da população atual de Paracatu é formada por afrodescendentes. Quando acabou a escravidão, os negros foram dispensados e, como não tinham onde ficar, ocuparam terras sem dono, formando quilombos. Meu avô (Darilo) foi escravizado no garimpo e depois viveu no quilombo Muriti do Costa, assim como eu e meu pai.

O senhor sabe de qual país africano veio o seu avô?

Não tem como saber. O passado dos escravos era apagado. Quando africanos de um mesmo país chegavam a Paracatu, eram separados para que não tivessem com quem conversar. Assim, os senhores de engenho e os fazendeiros evitavam as rebeliões. Para você ter uma ideia do nível de violência daquele tempo, os escravos dormiam com as canelas presas a troncos para que não pudessem interagir durante a noite.

A qual atividade o seu pai se dedicava?

Como todo negro daqui, meu pai (Luiz) era garimpeiro, mas também trabalhava como sanfoneiro. Papai chegou a tocar para o (presidente) Juscelino Kubitschek e para a (escritora) Cora Coralina na famosa Festa do Milho, de Patos de Minas. Com o dinheirinho que juntou graças aos shows e ao garimpo, conseguiu nos trazer para a cidade. Ele montou um pequeno armazém de secos e molhados e fundou um clube para que os negros de Paracatu tivessem algum tipo de lazer. Pena que morreu muito cedo, foi embora com 44 anos. Na época, eu tinha apenas 14.

Casa de um dos quilombos de Paracatu

Qual foi o impacto da morte do seu pai na família?

Quando ele morreu, tudo o que tínhamos acabou. Perdemos o armazém e eu tive de começar a trabalhar para ajudar no sustento da minha mãe e dos meus oito irmãos. Adulteraram a minha identidade para que eu fosse admitido pela empresa que estava fazendo a obra de uma estrada em Brasília. Fui ‘gato’ ao contrário: em vez de diminuírem a minha idade, como acontece com alguns garotos que tentam entrar nas categorias de base de grandes clubes, passei dos 14 para os 18 anos.

Dario (o penúltimo agachado) no América-MG em 1964

E como o futebol apareceu em sua vida?

Antes de papai morrer, ele me deu um par de chuteiras que eu usava nos campinhos de terra de Paracatu. Quando me mudei para Brasília, trabalhava como servente de pedreiro e jogava no time da firma. Acabei me destacando e fui chamado para jogar pela seleção do Distrito Federal. No primeiro aniversário da inauguração de Brasília, em 1961, organizaram um amistoso contra o Santos, do Pelé. Perdemos de 4 a 0, mas chamei a atenção do Augusto da Costa, zagueiro da Seleção na Copa de 1950. Ele me orientou a ir ao Rio de Janeiro para fazer teste no Vasco. Falei que não ia porque não podia largar o emprego. A minha família dependia de mim.

E o que o Augusto lhe respondeu?

Ele falou assim: “Vai lá e fica uns três meses no Vasco. Nestes três meses, eu mando dinheiro para a sua família. Se não der certo, você volta para Brasília”. Depois de um mês, o Vasco decidiu ficar comigo. O pessoal tomou um susto quando descobriu que, na verdade, eu tinha só 17 anos.

Mas o senhor não chegou a jogar como profissional no Vasco.

Não joguei. Em uma das minhas idas para Minas Gerais, fiz, escondido, um teste no América-MG. Gostaram de mim e me ofereceram um contrato muito melhor do que a ajuda de custo que o Vasco me pagava. Eu morava no alojamento de São Januário. Durante uma noite, pulei o muro do estádio e fui até a rodoviária pegar um ônibus para Belo Horizonte.

Como o Vasco reagiu à sua fuga?

Dario em um amistoso contra a seleção japonesa em 1967 (Acervo Histórico/Palmeiras)

O pessoal ficou revoltado. E com razão, né? Não devia ter feito o que fiz, mas precisava melhorar a situação financeira da minha família. O Vasco me acusou de deserção e a CBD (atual CBF) me puniu com seis meses de suspensão. E, logo que cheguei ao América-MG, sofri uma fratura na tíbia. Pensei: “Os deuses do futebol estão me castigando” (risos).

Como foi a sua chegada ao Palmeiras?

Depois que eu me recuperei, o América montou um ótimo time. Contratou bons jogadores, como o Jair Bala, que também atuou no Palmeiras. No Campeonato Mineiro de 1964, eu e o Jair fizemos 48 gols. Alguns clubes vieram atrás da gente, como Corinthians, Santos e Botafogo. Mas o Palmeiras entrou na concorrência e me contratou.

Em 1965, o Verdão tinha uma grande equipe que entrou para a história como a Primeira Academia. Não ficou com receio de se transferir para um time com tantos craques?

Eu me lembro de que no fim de 1964 eu estive na Vila Belmiro para falar com o Santos. O representante do Santos, sabendo do interesse do Palmeiras, me falou assim: “Se eu fosse você, não iria para o Palmeiras porque lá é um cemitério de craques. O time é muito bom, você não vai jogar”. Eu respondi: “Não me importo de ficar no banco. Sou valente e vou treinar duro. Se me derem cinco minutos, vou fazer o meu melhor”. Lembro que, na minha chegada, o Dom Filpo (Núñez, técnico do Verdão em 1965) me perguntou se eu tinha alguma camisa preferida. Falei que jogava com a 7, com a 8, com a 9, com a 20… eu só queria jogar.

O atacante com Ademir e Tupãzinho durante viagem a Nova York, em 1967 (Acervo Histórico/Palmeiras)

O senhor teve participação importante na conquista do Rio-São Paulo daquele ano. Fez dois gols na goleada sobre o São Paulo por 5 a 0 e marcou mais um no jogo decisivo, contra o Botafogo, sempre saindo do banco. Como era cumprir o papel de 12º jogador?

Eu não era um craque, mas sabia finalizar e tinha muita velocidade. Fazia 100 metros em 11 segundos e pouco. Costumava pedir para o Ademir esticar a bola na frente para eu ganhar do zagueiro na corrida. Não começava jogando a maioria das partidas, mas sempre entrava.

Servílio, Dario e o dirigente Jordão Sacomani (à direita) (Acervo Histórico/Palmeiras)

Como era a sua relação com o técnico Filpo Núñez?

Ele gostava muito de mim. Não só ele, todos os dirigentes do Palmeiras me tratavam bem. Lembro que, depois de um jogo, eu comentei com um repórter de rádio que tinha vontade de comprar uma geladeira para a minha mãe. Naquele tempo, quase ninguém tinha geladeira em Paracatu. Alguns diretores do clube ficaram sabendo e mandaram entregar uma geladeira novinha na casa da minha mãe. Foi uma festa na cidade! Todo mundo ia visitar a minha mãe para beber água gelada (risos).

Ainda em 1965, no dia 7 de setembro, o senhor teve a oportunidade de defender a Seleção no amistoso de inauguração do Estádio do Mineirão, quando a CBD convidou o Palmeiras para representar o país contra o Uruguai. Qual foi a sensação de vestir a camisa verde e amarela?

Foi uma satisfação imensa, um sonho que realizei graças a este clube que mora no meu coração. O Palmeiras me deu trabalho, comida, a chance de melhorar a vida da minha família e a honra de jogar pela Seleção. Aliás, pouca gente sabe que era para eu ter iniciado a partida contra o Uruguai. Só não fui titular porque o Júlio Botelho, que era uma bandeira do clube e do futebol nacional, tinha acabado de voltar ao Palmeiras para encerrar a carreira. Mas entrei no segundo tempo e dei a minha contribuição.

No dia 25 de maio deste ano, em Minneapolis, nos EUA, um homem negro (George Floyd) foi assassinado por um policial branco (Derek Chauvin) em um episódio que desencadeou protestos contra o racismo em todo mundo. Em sua carreira, o senhor foi vítima de racismo?

Infelizmente, o racismo não é um problema de agora, ele sempre aconteceu. Na minha época, os zagueiros me xingavam muito de macaco, mas eu tentava não ligar. Teve só uma vez que um juiz me tirou do sério.

O ponta se destacava pela velocidade (Acervo Histórico/Palmeiras)

O que houve?

Foi em um jogo do Palmeiras no Rio Grande do Sul. Tínhamos acabado de fazer o segundo gol e o Inter já estava pronto para dar a saída de bola. Percebi que os nossos zagueiros estavam comemorando, então retardei a minha volta para o nosso campo, impedindo que o juiz recomeçasse a partida. Vendo a minha malandragem, ele falou assim para mim: ‘Sai daí, negro vagabundo!’. Aquelas palavras me machucaram muito.

Qual foi a sua reação?

Quando o jogo acabou, passei no vestiário, mas nem banho tomei. Peguei um táxi e fui para o nosso hotel, onde o juiz também estava hospedado. Fiquei na recepção, esperando pelo sujeito, mas acho que ele me viu e entrou por outra porta. Não ia brigar, só queria deixar claro o quanto me orgulho da minha origem. O Djalma (Santos) me viu ali plantado naquele frio terrível e pediu para eu relevar, me disse que não valia a pena. De madrugada, o árbitro apareceu no meu quarto para pedir desculpas. Eu aceitei, mas disse para ele tomar mais cuidado porque as palavras ferem.

Em janeiro, o clube lançou a campanha Palmeiras de Todos, criada para valorizar a diversidade da torcida palestrina. O que achou da iniciativa?

Toda iniciativa que valorize a diversidade é importante, sobretudo quando parte de um clube com o tamanho do Palmeiras, que tem torcedores de todas as etnias. Falo isso com orgulho porque aqui em Paracatu, uma cidade com muitos negros, a torcida do Verdão é enorme. Inclusive, antes desta pandemia, uns amigos palmeirenses sempre vinham à minha casa me buscar para eu ver os jogos do time junto com eles.

Dario vive em Paracatu, sua cidade natal

Baile no Rei

Dario (o primeiro agachado) integrou a Primeira Academia

O grande jogo de Dario pelo Palmeiras ocorreu no dia 12 de dezembro de 1965, contra o Santos, pelo Campeonato Paulista. O time de Pelé, Pepe e companhia, que havia assegurado o título estadual duas semanas antes, tomou um baile no Parque Antarctica. A goleada por 5 a 0 (o primeiro tempo acabou 3 a 0) foi uma das maiores derrotas da carreira do Rei.

Escalado como titular, Dario marcou duas vezes, assim como Servílio – Dudu completou o placar. “Foi uma tarde em que tudo deu certo”, recorda-se o ex-atacante, que fez 20 gols em 86 partidas pelo Verdão.

O ex-atleta fundou um instituto para defender os direitos dos negros

Consciência negra

Com o objetivo de resgatar a história dos negros escravizados em Minas Gerais, Dario fundou em Paracatu o Instituto de Defesa da Cultura Negra e dos Afrodescendentes. A organização, também conhecida como Fala Negra, contou com o apoio da Fundação Palmares para fazer um cuidadoso mapeamento de todos os quilombos da região noroeste do estado. O trabalho, concluído em dez anos, identificou 83 comunidades quilombolas, sendo cinco delas na cidade natal do ex-jogador.

História digna de livro

Livro sobre o ex-jogador foi lançado neste ano (Reprodução)

A trajetória percorrida por Dario Alegria dentro e fora de campo está retratada no livro “O Leopardo das Alterosas”, lançado no início deste ano. Escrita pelo historiador Aroldo Dayrell com o apoio da prefeitura de Paracatu, a obra relata histórias saborosas vivenciadas pelo atacante, apelidado de Leopardo pelo narrador esportivo Fiori Gigliotti.

Uma delas remete à temporada de 1967, quando Dario se transferiu do Palmeiras para o Monterrey-MEX. Segundo o ex-jogador, o clube que o comprou tinha como investidor o cantor norte-americano Frank Sinatra.

“Teve até uma vez em que o Sinatra desceu de helicóptero no meio do campo, em um treino. O assessor dele entregou para cada jogador um envelope com US$ 2 mil. Nunca tinha visto tanta grana”, diz o ex-atleta, que voltou ao Brasil em 1969, sagrando-se campeão estadual com o Fluminense – antes de parar, em 1974, ele ainda atuou por Flamengo, Olaria-RJ, Caldense-MG, Botafogo-SP, Villa Nova-MG e CEUB-DF.

Dario (o primeiro agachado) fez parte do time que conquistou o Robertão em 1967 (Acervo Histórico/Palmeiras)