Revista Palmeiras – As memórias de São Marcos sobre a conquista da América em 1999

Texto originalmente publicado na edição 46 da Revista Palmeiras. Para conferir o conteúdo completo, seja sócio Avanti e clique aqui para ter acesso à revista digital do Verdão.  

Quando peguei um pênalti em meu primeiro jogo como titular do Palmeiras, em 1996, fiz uma espécie de acordo com Deus: toda vez que Ele me soprasse no ouvido o canto escolhido pelo cobrador, eu ia me ajoelhar e dedicar a defesa ao Senhor. Os ateus que me perdoem, mas no futebol, se você não tem fé, dificilmente consegue enfrentar a pressão de uma partida importante, de um estádio lotado.

Naquele 16 de junho de 1999, eu orei muito para que Deus se lembrasse do nosso pacto. A decisão da Copa Libertadores contra o Deportivo Cali-COL foi um dos momentos mais tensos da minha vida. Saímos na frente no começo do segundo tempo, mas tomamos o empate logo em seguida. Com o apoio da nossa torcida e muito sofrimento, fizemos 2 a 1 e levamos o jogo para as penalidades.

Decidir um título dentro de casa não é fácil, velho… Ainda mais quando você torce pelo Palmeiras desde criança e conhece a história do clube. Ganhamos vários campeonatos diante da nossa torcida, mas também vivemos grandes decepções. Quando o juiz apitou o fim da partida, pensei no Paulista de 1986. Aquela derrota para a Inter de Limeira (por 2 a 1, no Morumbi) marcou a minha geração.

Sendo sincero, eu estava com muito medo de perder a final da Libertadores.

Esse medo virou angústia assim que a disputa por pênaltis começou. Na nossa primeira cobrança, o Zinho chutou no travessão. Para piorar, eu não conseguia escolher o canto certo. Quando arriscava um lado, o cara batia no outro; quando esperava para pular, a bola passava longe de mim.

O pessoal sempre fala que o goleiro não tem tanta responsabilidade na hora dos pênaltis. Mas como um time pode ganhar se o goleiro não pegar nenhum?

Se você olhar o vídeo do jogo, vai reparar que, enquanto me preparo para a quarta penalidade, fico repetindo uma frase em voz baixa. Na verdade, eu estava rezando.  Já se passaram 20 anos, mas ainda me lembro direitinho como aquela oração terminava: “Oh, meu Deus, me ajuda a acertar o canto”.

“Até jejum, eu fiz” 

Eu era o terceiro goleiro do Palmeiras no início da Libertadores. Estava inscrito, mas não tinha a menor expectativa de jogar. O titular era o Velloso, meu ídolo no futebol e um dos grandes goleiros da história do clube. O reserva imediato da posição era o Sérgio, outro grande jogador e um irmão que o futebol me deu.

Alguns dias antes da minha estreia na Libertadores, fui a Santa Bárbara D’Oeste (SP) disputar uma partida pelo Paulista de Aspirantes, contra a União Barbarense. Se não me engano, o Velloso se contundiu nesse mesmo domingo.

Quando voltei para São Paulo e me contaram da lesão do Velloso, pensei que o Sérgio pegaria o lugar dele. Mas o Felipão achou que eu estava com mais ritmo porque vinha atuando pelo Aspirantes e decidiu me escalar. Na hora, eu gelei… Num dia, estava jogando no Aspirantes contra a Barbarense; no outro, ia enfrentar o Corinthians pela Libertadores. Rezei mais que padre. Até jejum, eu fiz.

Estava em boa forma, mas a minha experiência era nenhuma, né? Apesar de já ter sido chamado para a Seleção, tinha poucos jogos no Profissional. A ajuda dos caras mais experientes do time foi fundamental para eu entrar tranquilo. Zinho, Arce, Júnior Baiano, Cléber, Paulo Nunes… todo mundo me passou confiança. Os caras falavam assim: “Se a gente gritar o seu nome no escanteio, sai do gol, velho!”. Eles gritavam e eu saía até nas bolas em que deveria ficar debaixo do travessão.

Para falar a verdade, a aposta do Felipão não deu muito certo nos primeiros jogos. Tive altos e baixos. Fui melhorando ao longo da competição. Nas oitavas de final, enfrentamos o Vasco, que tinha sido campeão da Libertadores no ano anterior. Foram dois grandes jogos, principalmente o segundo. Vencemos em São Januário por 4 a 2. Não fui espetacular, mas também não comprometi. Já era alguma coisa.

“Tô virado no Jiraya”

A grande virada da minha vida aconteceu no primeiro jogo das quartas de final, contra o Corinthians. Cara, eu peguei muito! Muito mesmo! Fiz uma das melhores partidas da minha carreira. Os caras chutaram bastante no gol, imaginando que eu fosse tremer. Mas, de tanto eles chutarem, acabei ganhando confiança. Foi quando percebi que tinha nível para jogar no Palmeiras e era importante dentro do grupo.

Tudo dava certo. Teve um chute, se não me engano do Fernando Baiano, em que a bola bateu no travessão, nas minhas costas e saiu. Ali, eu pensei: “Rapaz, hoje eu tô virado no Jiraya”. Vencemos por 2 a 0. No outro dia, ligo a televisão e vejo que todo mundo está me chamando de São Marcos. As coisas mudam muito rápido.

E quase mudaram para pior no jogo de volta. O Corinthians fez 2 a 0 na gente e a decisão da vaga foi para os pênaltis. Que pressão, velho! Muita gente fala que pênalti é loteria, mas isso é conversa fiada. Antes de um mata-mata, você sempre estuda os cobradores, sabe qual é o canto preferido deles.

Tem também a parte mental, né? Você precisa olhar no olho do adversário, ver como ele vem andando, se está nervoso. Já joguei contra caras que iam bater pênalti como se estivessem buscando um copo d´água. Mas já joguei contra caras que pareciam ir para a marca da cal com um encosto, os olhos arregalados, o rosto pálido.

Quando o Vampeta pegou a bola, vi a tensão nos olhos dele. Eu o conheço desde a Seleção de Juniores, treinamos muito um contra o outro. Ele estava em uma situação difícil… Pensei comigo: o Vamp vai chutar no canto direito, que é o mais fácil para um destro. Acertei o lado e acabei pegando. Até hoje, brinco com ele.

Aquela vitória tirou um fusca das nossas costas. Foi uma descarga de adrenalina absurda. Não dormi nada depois do jogo. Como você dorme depois de uma decisão por pênaltis entre Palmeiras e Corinthians? A tensão era enorme. No fundo, eu acho que tive de operar o coração, em 2017, por ter jogado partidas como aquela.

“Todos jogavam demais”

A minha grande defesa na Libertadores de 1999 foi no primeiro jogo da semi, contra o River Plate-ARG. Estava andando para o lado esquerdo e o Saviola bateu no meu contrapé. Cheguei à bola com a ponta dos dedos, dei um tapinha e ela morreu em cima da rede do gol. Caí todo dolorido no chão porque fui ao limite do meu alcance. Sempre digo que defesa boa é aquela em que você se estica até as costas estalarem.

Foi outra partida em que peguei até pensamento. Perdemos por 1 a 0, mas comemoramos bastante porque sabíamos ter totais condições de reverter o placar no Palestra Italia. O time do River era bom pra caramba, mas o nosso era melhor ainda. Na volta, o Alex gastou a bola e vencemos por 3 a 0.

Às vezes, ouço que o Palmeiras ganhou a Libertadores por minha causa. Não é verdade. Fui tão importante quanto os outros jogadores. Nosso elenco era experiente e tinha muita autoconfiança. Tirando eu e o Roque Júnior, que saímos da base, só havia cobra criada: Arce, Júnior Baiano, Cléber, Júnior, Sampaio, Galeano, Rogério, Alex, Zinho, Evair, Paulo Nunes, Oséas, Euller… todos jogavam demais!

Nosso ambiente de trabalho era ótimo e isso fazia a diferença. Passávamos muito tempo juntos na concentração. Um dos nossos passatempos favoritos era escutar o Paulo Nunes narrando suas aventuras noturnas. Era uma história pior do que a outra.

“É a melhor coisa que existe”

Até hoje, a minha mãe é grata ao Felipão. Ele cuidava de mim como se fosse o meu pai: era exigente, dava broncas, mas sempre me apoiava nas horas difíceis. Na Copa de 2002, o Felipão fez comigo o mesmo que já tinha feito na Libertadores de 1999. Ninguém achava que eu deveria ser o goleiro titular do Brasil, mas ele me bancou, apostou em mim. Eu o respeitava tanto que morria de medo de decepcioná-lo.

Eu também morria de medo de decepcionar os nossos torcedores. Já tinha sido um deles, sabia como se sentiam. A Libertadores era o nosso sonho, o título que faltava em nossa estante. Para chegarmos à final, eliminamos Vasco, Corinthians e River… Com todo o respeito ao Deportivo Cali, não podíamos desperdiçar aquela chance.

Só que as coisas não saíram da forma como a gente imaginou. Os dois jogos foram bem mais duros do que se esperava. De repente, eu me vejo no meio de uma decisão por pênaltis em que o nosso adversário está a duas cobranças de ser campeão.

“Oh, meu Deus, me ajuda a acertar o canto.”

Deus, enfim, ouve a minha prece. Na quarta cobrança, do Bedoya, eu acerto o canto. A bola carimba a trave e, na volta, raspa a sola da minha chuteira. Já pensou se ela bate em mim e entra no gol? Acho que ninguém me chamaria de Santo hoje em dia.

O Euller fez o nosso quinto pênalti e viramos a disputa para 4 a 3. O Zapata, que era o melhor cobrador do Deportivo Cali, foi o cara escolhido para chutar a última penalidade da série. No tempo normal, ele tinha marcado um gol de pênalti pegando de três dedos na bola. Não é qualquer um que tem esse sangue frio.

Na hora em que o Zapata ajeitou a bola, pensei: “Vou mudar o canto”. Só que ele também mudou e eu já caí meio desanimado, pensando: “Putz, errei de novo”. Então, eu olhei para trás e vi a bola bater na placa de publicidade. Pá!

"Saiu? Ganhamos?"

Cara, é difícil explicar o que senti naquele momento. Ser campeão da América, nos pênaltis, é a melhor coisa que existe. Saí correndo como louco. Se o Palestra Italia não tivesse fosso, eu voaria no meio da torcida.

Foi um misto de sensações. Alegria, alívio, euforia… Precisamos sofrer muito para ganhar a Libertadores. É uma competição cruel, cara. Você não vai conquistá-la só porque o seu time é melhor. O seu time precisa ser melhor e se sacrificar.

Ninguém acredita quando conto, mas, sendo sincero, eu não faço ideia do que fiz depois daquela final. Fui para um bar? Fiquei em casa? Não lembro de nada. Foi algo que simplesmente se apagou na minha memória. Só sei que fui embora, todo felizão, com a chave de um Toyota no bolso. Ganhei o carro após ser eleito o craque da Libertadores. Nunca um goleiro havia levado esse prêmio.

“Foi um divisor de águas”

Quando olho para trás e penso em tudo o que vivi, vejo que a Libertadores de 1999 foi um divisor de águas na minha vida. Eu só me tornei o que me tornei porque conquistamos a América. Ali, tive uma oportunidade inesperada, aguentei a pressão e acabei entrando para a história do meu time de infância. Se hoje sou homenageado até com um busto no clube, deve ser porque dei a minha contribuição.

Foi um grande título. Se fosse um título mais ou menos, não estaríamos falando dele depois de 20 anos, né?