Departamento de Comunicação
Encontradas há dois anos pelo Departamento de Acervo Histórico e Memória do Palmeiras, imagens raras publicadas originalmente no extinto jornal “São Paulo Esportivo” preservam a história do primeiro título do clube, conquistado exatamente um século atrás. Elas mostram a multidão que compareceu à Chácara da Floresta em 19 de dezembro de 1920 para assistir à vitória do Palestra Italia sobre o Paulistano no jogo decisivo do Campeonato Paulista daquele ano, um feito que colocou o Verdão, com seis anos de existência e alguns troféus já acumulados em partidas e torneios amistosos, definitivamente no grupo dos grandes campeões do futebol brasileiro.
Chama a atenção a elegância dos presentes: os homens estão todos de terno e gravata, enquanto as mulheres usam vestido longo e salto alto. Em meio ao mar de chapéus, duas torcedoras precisam subir em uma mesa redonda para conseguir enxergar o campo. O interesse pela partida é tamanho que os guardas, posicionados próximos da linha de fundo a fim de coibir possíveis invasores, também olham fixamente para o gramado, como se fizessem parte do público.
Segundo a revista “Sport Ilustrado”, cerca de 20 mil pessoas viram o duelo que transformou para sempre a história do Maior Campeão do Brasil e da própria cidade. A conquista de um ainda incipiente time fundado por italianos sobre a principal potência do cenário paulista, que simbolizava a elite da metrópole, contribuiu com a popularização do esporte no país e teve papel importante na integração dos imigrantes à sociedade brasileira.
Fenômeno de massa
Para compreender a dimensão da façanha alcançada um século atrás pelo Verdão, é preciso recuar até o fim do século 19, quando se intensificou a imigração italiana no Brasil. Com a promulgação da Lei Aurea, que aboliu o regime escravocrata em 1888, os grandes fazendeiros de café das regiões Sul e Sudeste substituíram o negro africano pelo branco europeu. Estima-se que, de 1880 a 1920, mais de 1 milhão de italianos se mudaram para o estado de São Paulo.
Mas as péssimas condições de trabalho na lavoura, entre outros fatores, fizeram com que milhares deles se estabelecessem na capital paulista, onde ganharam a vida no comércio e na indústria. Alguns prosperaram; outros sofreram com o preconceito. Os italianos e seus descendentes eram vistos, sobretudo pelas famílias da aristocracia paulistana, como pessoas pobres, sem estudo, que só estavam no Brasil para escapar da crise econômica instalada na Europa.
Foi com o desejo de representar esses imigrantes discriminados, vindos de diferentes regiões da Itália, e desafiar as maiores equipes da cidade que, em 26 de agosto de 1914, nasceu o Palestra.
Superados os contratempos iniciais que, por pouco, não abreviaram a sua trajetória ainda no transcorrer da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o clube se filiou em 1915 à Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA) e disputou, na temporada seguinte, a sua primeira competição oficial, o Campeonato Paulista.
Cabe lembrar que, de 1913 a 1916, São Paulo teve dois torneios, organizados paralelamente pela APEA e pela Liga Paulista de Foot-Ball (LPF). Com a extinção da LPF, alguns jogadores dos clubes inscritos naquela entidade se transferiram para o Alviverde – entre o fim de 1916 e o início de 1917, juntaram-se à esquadra do craque Bianco outros descendentes de imigrantes como Caetano, Flosi, Martinelli, Ministro, Pedretti e Picagli, além de Heitor, o maior artilheiro da história palmeirense com 315 gols.
A partir da temporada de 1917, “o time dos italianos”, como era chamado com um quê de deboche, tornou-se um fenômeno de massa, aglutinando não somente os oriundi, mas também torcedores de diferentes nacionalidades e classes sociais. De acordo com o respeitado jornalista Thomaz Mazzoni (1900-1970), todos os aspectos atrelados ao futebol, como acomodação de público, capacidade de estádios, segurança e transporte, tiveram de ser repensados devido à popularidade do Verdão.
Ânimos exaltados
Foi neste contexto que germinou a rivalidade entre Palestra e Paulistano. Em 1917, eles se enfrentaram três vezes, com duas vitórias palestrinas (3 a 2 e 1 a 0) e um empate (2 a 2) – aliás, a única derrota sofrida pelo time do Jardim América na campanha do bicampeonato paulista foi justamente para o Verdão, que terminou em segundo lugar. O surgimento de um adversário à altura levou a maior equipe do estado a se reforçar com o lendário Arthur Friedenreich, um dos maiores jogadores de todos os tempos.
A acirrada disputa entre Palestra e Paulistano teve o seu ápice na sexta rodada do estadual de 1918. Em um controverso embate disputado na casa do rival, o Alviverde perdeu por 3 a1 – o juiz deixou de marcar dois pênaltis para os visitantes e ainda expulsou vários atletas palmeirenses. Como se não bastasse, jogadores e simpatizantes do time do Jardim América insultaram a equipe e a torcida adversárias, dando início a uma enorme confusão.
Como forma de protesto, o Verdão se retirou do campeonato e pleiteou sua desfiliação da APEA. A crise, contudo, foi contornada e, em 1919, o time esmeraldino obteve mais um vice. A taça ficou com outra vez com o Paulistano, que conquistou o torneio pelo quarto ano consecutivo (ou seja, até então, todas as edições estaduais que o Palestra disputara fora vencida pela equipe do Jardim América).
Dá licença…
A estreia palmeirense no Paulista de 1920 aconteceu em 25 de abril, dois dias antes da assinatura do contrato de compra do Parque Antarctica. E a sonhada aquisição da casa própria, símbolo do crescimento e estruturação do clube, foi comemorada com um categórico triunfo por 3 a 0 diante do Corinthians.
Ao fim do primeiro turno, completadas nove rodadas, o Palestra liderava a tabela com um ponto de vantagem sobre o Paulistano – naquela época, a vitória valia dois pontos e o empate, um. No entanto, a perspectiva de o Alviverde se sagrar campeão pela primeira vez quase desmoronou no dia 5 de setembro, quando o clube reencontrou o Corinthians, na abertura do returno.
Um desentendimento entre o ponta corintiano Neco e o goleiro palmeirense Primo desencadeou uma briga envolvendo jogadores de ambos os times. Prejudicado de novo pela arbitragem, que apontou uma penalidade duvidosa para o oponente, e inconformado com a suspensão de três meses aplicada a Bianco pela participação na algazarra, o Verdão solicitou à APEA uma licença de 180 dias.
A pedido das demais agremiações da capital, porém, o Palestra se comprometeu a reconsiderar a decisão se a pena ao zagueiro fosse revogada. Em 17 de setembro de 1920, o jornal “Correio Paulistano” informou que a punição dada a Bianco fora reduzida para um mês, o que, na prática, não o excluiria de nenhuma partida na competição.
Além disso, a APEA determinou que a escolha dos árbitros, a partir da 11ª rodada, passaria a ser responsabilidade exclusiva dos clubes.
Água no vinho
O Alviverde entrou na rodada final com dois pontos de vantagem em relação ao Paulistano. Bastaria, portanto, um empate no Parque Antarctica para o Palestra garantir a sua primeira conquista de expressão. Mas a festa acabou adiada: o time do Jardim América venceu por 1 a 0, forçando a realização de um jogo de desempate em campo neutro, conforme estabelecia o regulamento do campeonato.
A partida decisiva foi agendada para o dia 19 de dezembro na Chácara da Floresta, situada próxima da Ponte das Bandeiras, onde atualmente se localiza o Clube Tietê. Todos os ingressos foram vendidos de maneira antecipada, obrigando a Prefeitura a aumentar a quantidade de bondes em circulação, de modo a assegurar que o público conseguisse se deslocar até o estádio.
O clima na cidade era tão tenso que a diretoria da APEA fez um apelo aos torcedores, publicado na edição de 18 de dezembro do jornal “O Combate”: “Pedimos, em nome dos foros da civilização social e esportiva, que a pugna não seja de modo algum perturbada, devendo todos manter-se à altura do prélio. A calma e a serenidade serão as melhores seguranças de que o jogo correrá com o brilhantismo esperado (…) A direção também apela a todos os jogadores para que, em hipótese alguma, sejam empregados meios violentos, devendo reinar a maior cordialidade possível”.
Delírio arrebatador
Para evitar que o troféu escapasse outra vez, a comissão técnica palestrina tomou medidas drásticas, a começar pela troca de quatro jogadores que haviam atuado na derrota frente ao Paulistano no jogo anterior. Fabbi, Caetano, Ernesto Imparato e Caetano Imparato foram substituídos por Severino, Matteo Forte, Federici e Martinelli, que faziam parte do segundo quadro, como na época era chamado o time reserva.
As alterações surtiram o efeito esperado. Segundo o jornal “A Gazeta”, “a vanguarda verde-branca dominou completamente o Paulistano, atuando com uma segurança admirável e uma harmonia inimitável”. Na defesa, Bianco se mostrou “invencível”, a exemplo de Picagli, a quem coube a missão de perseguir Friedenreich pelo gramado, bastante danificado pela chuva. Na frente, Forte e Heitor se destacaram, “produzindo bons tiros contra a meta adversária”.
Ainda de acordo com “A Gazeta”, aos cinco do segundo tempo, Martinelli recebeu passe de Heitor e marcou “o primeiro ponto, fazendo ressoar um trovão de aplausos”. Nove minutos depois, porém, Mário Andrade tabelou com Friedenreich e empatou o jogo.
O Verdão se refez sem demora do golpe sofrido e voltou a pressionar o Paulistano. Aos 29 da etapa final, depois de nova jogada de Heitor, a bola sobrou limpa para Forte anotar o gol da vitória palmeirense.
Quando o árbitro alemão Hermann Friese apitou o fim do confronto, São Paulo virou palco de uma festa jamais vista até então. A revista “Sport Ilustrado” recorreu à palavra “loucura” para descrever a comemoração dos palestrinos pela conquista do inédito título.
“O quadro que traz as cores italianas exultou, propagando-se na colônia essa espécie de delírio arrebatador, que não raro ataca os indivíduos predispostos à insânia. E foi uma loucura, atenuada um pouco pela chuva pesada que abrandou tamanha fúria”, relatou a publicação. “Grupos populares, em aclamações entusiásticas, davam à cidade um aspecto festivo de comemoração nacional. Houve libações e excessos. A polícia, no afã de prevenir desmandos, encheu os postos policiais de exaltados. Pela noite afora, autos repletos percorriam São Paulo, ouvindo-se em cada um deles o roufenhar de uma sanfona, em acordes da marcha real italiana.”
Marco histórico
Pode-se dizer, sem exagero, que a conquista palestrina simbolizou um momento de transformação do futebol brasileiro. Cada vez mais incomodado com a popularização do esporte representada pela ascensão de clubes como o Palestra, o Paulistano se desvinculou da APEA, em 1926, para fundar a Liga de Amadores de Futebol (LAP). Sem o reconhecimento da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), porém, a entidade naufragou e o time do Jardim América optou por fechar o seu departamento de futebol em 8 de janeiro de 1930, três anos antes da profissionalização do esporte no Brasil.
O Palestra, em contrapartida, continuou colecionando troféus ao longo das décadas seguintes e, já como Palmeiras, foi eleito pelo jornal “Folha de S. Paulo” o Campeão do Século 20. No livro “1914 Palestra – S. E. Palmeiras 1959”, o célebre historiador palmeirense Gino Restelli resumiu com uma frase de efeito o impacto provocado pelo Alviverde no futebol nacional: “O Palestra Italia apresentou o futebol à elite e a elite ao futebol”.
Jogo decisivo
Palestra Italia 2 x 1 Paulistano
Campeonato Paulista de 1920 (jogo-desempate)
Data: 19/12/1920
Estádio: Chácara da Floresta, em São Paulo (SP)
Árbitro: Hermann Friese (ALE)
Palestra Italia: Primo; Bianco e Oscar Federici; Bertolini, Picagli e Severino; Ministro, Forte, Heitor, Augusto Federici e Martinelli
Técnicos: Giuseppe Roberti e Frediano De Lucca
Paulistano: Arnaldo; Guarany e Carlito; Sérgio, Zito e Mariano; Agnello, Mário Andrade, Friedenreich, Cassiano e Carneiro Leão
Gols: Martinelli aos 5, Mário Andrade aos 14 e Forte aos 29 do 2º tempo
“A luta foi épica. No 1º tempo não houve abertura de contagem. Martinelli fez o 1º gol do Palestra Italia na 2ª fase, e Mário Andrade empatou pouco depois. Empatada dessa forma a peleja, novamente assumiu proporções grandiosas, pois aí é que ela esteve mais bela. Faltavam dez minutos para terminar o tempo regulamentar e muita gente acreditava já na possibilidade de uma prorrogação, conforme mandavam os estatutos da entidade máxima do esporte paulista, quando Heitor empreendeu uma escapada ligeira, “cobrindo” Carlito com a bola. Esta, depois de algumas peripécias, faz com que se estabeleça uma rápida confusão à porta do posto de Arnaldo. Forte, o ágil e decidido extrema palestrino emendou-a em direção à meta, quando o seu guardião se achava fora dela, marcando assim o gol que deu a brilhante, justa e honrosa vitória ao Palestra Italia no jogo e no Campeonato Paulista de 1920”. (Thomaz Mazzoni, no livro “A História do Futebol no Brasil”).
Os heróis palestrinos de 1920
Matteo Forte (atacante)
Autor do gol da vitória e do título, foi a surpresa da decisão.
Augusto Federici (atacante)
Destaque do segundo quadro, ganhou o lugar de Ernesto Imparato.
Américo Bertolini (meio-campista)
Incansável marcador, jogou sempre em prol do coletivo.
Giovanni Del Ministro (atacante)
Meia direita de porte elegante, fez nove gols ao longo da campanha.
Oscar Federici (zagueiro)
Ganhou vaga no primeiro quadro na reta final da competição.
Heitor Marcelino Domingues (atacante)
Maior artilheiro palestrino, participou dos dois gols da final.
Higino Martinelli (atacante)
Ponta-esquerda veloz, marcou o primeiro tento contra o Paulistano.
Primo Zanotta (goleiro)
Firme, confiante e atento, foi a revelação do campeonato.
Severino Cestari (meio-campista)
Dedicado, entrou no time após a lesão sofrida por Arturo Fabbi.
Bianco Gambini (zagueiro)
Um dos grandes ídolos do clube, destacou-se durante todo o torneio.
Antônio Picagli (meio-campista)
Fundamental no equilíbrio defensivo, foi um competente marcador.