Rival forte, gol impedido e revolta: estreia do Verdão no exterior completa 95 anos
Fernando Galuppo
Fernão Ketelhuth
Departamento de Comunicação
Restava um minuto para o fim do amistoso no Estádio Parque Central, em Montevidéu, quando o ponta-esquerda Zailo Saldombide, em clara posição de impedimento, fez o gol da vitória do Uruguai sobre o Palestra Italia por 3 a 2. Revoltados com o árbitro Gariboni, os atletas do Verdão se recusaram a reiniciar a partida, deixando o campo sob aplausos de parte da torcida. Terminou assim, de forma inusitada, o primeiro jogo disputado pelo Maior Campeão do Brasil no exterior, no dia 8 de março de 1925.
As memórias daquele histórico confronto, que completa 95 anos neste domingo, estão preservadas nas páginas dos jornais “A Gazeta”, “El Pais” e “El Día”. Há divergências entre os relatos das publicações, em especial quanto aos autores dos gols. Os três periódicos, contudo, retratam uma arbitragem tendenciosa em favor da Celeste, que nove meses antes conquistara a medalha de ouro na Olimpíada de Paris, na França.
De acordo com “El Pais”, o duelo foi tecnicamente “pobre”, com nenhuma figura de grande destaque, exceção feita ao defensor uruguaio José Nasazzi, um dos pilares da equipe que se sagraria campeã mundial na Copa de 1930. Pelo lado palestrino, chamaram a atenção do veículo “os três homens do centro do ataque” (Heitor, Feitiço e Tatú) e “os dois backs (zagueiros), de bons recursos e má colocação” (Bianco e Nigro).
O tom severo do relato tem a ver com o tratamento dado pelo principal jornal do Uruguai ao amistoso. Nos dias anteriores ao embate, “El Pais” teceu críticas e questionamentos sobre o nível do futebol brasileiro na época e a própria finalidade do jogo, considerado um mero caça-níquel.
A Celeste saiu na frente aos 18 minutos, com Zailo Saldombide, mas o Alviverde reagiu ainda no primeiro tempo. Segundo “A Gazeta”, Tatú fez um gol mal anulado pouco antes de Feitiço igualar o placar, aos 42, com “um magistral arremate”. A virada veio aos oito da segunda etapa em outro “tiro fortíssimo” de Feitiço. De acordo com “El Pais”, porém, os dois gols palmeirenses foram anotados por Heitor, um deles de cabeça.
Impedimento escandaloso
Os donos da casa se aproveitaram de uma falha do goleiro Primo, até então um dos melhores em campo, para empatar a partida: aos 20, o arqueiro não segurou um chute fraco do atacante Cea, que, a exemplo de Nasazzi, tornar-se-ia um dos heróis do Uruguai na conquista da primeira edição da Copa do Mundo, cinco anos mais tarde. Segundo “El Pais”, contudo, o segundo gol celeste foi marcado por Zailo Saldombide e revoltou os jogadores do Palestra, que reclamaram de falta no lance.
O jogo parecia fadado a terminar sem ganhador quando Saldombide colocou o Uruguai novamente em vantagem – de acordo com “El Día”, o tento, em “indiscutível impedimento”, teve Mazzone como autor.
O erro “escandaloso” constrangeu até o público presente ao estádio, à época o mais importante do país. “Parte da audiência chegou a bater palmas para os rapazes da camiseta verde, à sua saída do campo”, descreve “A Gazeta”, para a qual “a derrota do quadro paulista foi devida, exclusivamente, à irritante parcialidade do árbitro da pugna (combate)”.
No dia 4 de março de 1944, “A Gazeta” publicou uma matéria especial sobre a estreia palmeirense no exterior. Nele, há a informação de que o juiz Gariboni assinalou 32 impedimentos contra o Verdão naquela tarde.
A atuação palestrina foi muito elogiada pela reportagem do vespertino “El Día”, que circulou em Montevidéu até a década de 1990. “Todos os jogadores do Palestra são rapazes fortes, de elevada estatura e muito ágeis. Começam fazendo lançamentos, evidenciando a potência de seus chutes, pois com facilidade colocam a bola onde querem”, relata a crônica. “A rapidez de movimentos parece ser a característica de todos, assim como a facilidade com que concebem e executam as jogadas (…) O Uruguai jogou mal e o Palestra pôde ganhar”, acrescenta.
Primeira excursão
O amistoso diante do Uruguai fez parte de uma excursão de três semanas que começou a ser planejada em 1923. Naquele ano, o Palestra enfrentou em São Paulo o Universal, vice-campeão uruguaio em 1919 e extinto nos anos 1930. Na ocasião, o elenco palestrino contava com o ítalo-uruguaio Edoardo Mazzucchi, que tinha boa relação com dirigentes daquele país.
Ao longo da viagem, feita a bordo do navio a vapor Taormina, o Verdão realizou quatro partidas, duas delas na Argentina. Para compensar a inexperiência internacional, o clube se reforçou com seis jogadores adquiridos por empréstimo: o goleiro Tuffy (Sírio), os meio-campistas Brasileiro (Braz Atlético) e Luiz dos Santos (São Bento) e os atacantes Feitiço (São Bento), Tatú (Taubaté) e Tito (A. A. das Palmeiras).
O meia Amílcar Barbuy, um dos atletas mais experientes da equipe, acumulou as funções de capitão e treinador durante a gira. Os dirigentes Nicolino Pepi e Angelo Cristofaro chefiaram a delegação, que teve 15 jogadores, entre eles Edoardo Mazzucchi, a quem foi designada a tarefa de enviar telegramas à imprensa brasileira com informações sobre a excursão do time. Completaram a comitiva palmeirense o diretor Dante Vagnotti e o jornalista Francisco Petinatti, editor do “Fanfulla”, tradicional veículo da comunidade italiana no Brasil.
Empate na despedida
Uma semana após a estreia no exterior, o Palestra voltou a enfrentar o Uruguai no Parque Central, famoso por ter abrigado a primeira partida da história das Copas (Estados Unidos 3 x 0 Bélgica, em 13 de julho de 1930). A Celeste ganhou de novo, desta vez por 1 a 0 – gol de Cea. De acordo com “El Día”, o calor “sufocante” afastou o público do estádio.
“Os brasileiros são rápidos, autoconfiantes e muito agressivos, usando o corpo mais do que o recomendável. Finalizam bem, mas não chutam com a frequência necessária. Provaram possuir, contudo, um conjunto homogêneo, capaz, sem pontos fracos”, analisa o jornal uruguaio.
Em 16 de março, a delegação palestrina partiu para Buenos Aires, onde encarou duas vezes a seleção argentina. Na primeira delas, no dia 19, o Verdão foi derrotado por 3 a 1 no Estádio de Avellaneda – Feitiço fez o gol palmeirense. O segundo jogo, disputado no dia 22 na cancha do Barracas, acabou em 0 a 0 graças à grande atuação do goleiro argentino Croce, segundo a matéria publicada em 4 de março de 1944 por “A Gazeta”.
Ressalta o periódico paulistano: “O Palestra não venceu nenhuma partida (na excursão). Fracassou? Não, se levarmos em conta quem enfrentou. Façam ideia: no Uruguai, jogou duas vezes com a célebre seleção campeã olímpica. Imaginem o que eram naquele tempo os uruguaios”.
* O jornalista uruguaio Luis Prats, do jornal “El Pais”, colaborou com o trabalho de pesquisa desta reportagem.
Ficha técnica – Seleção do Uruguai 3 x 2 Palestra Italia
Estádio: Parque Central, em Montevidéu
Data: 08/03/1925
Árbitro: Gariboni
Gols*: Zailo Saldombide aos 18 e Feitiço aos 42 do primeiro tempo; Feitiço aos 8, Cea aos 20 e Zailo Saldombide aos 45 do segundo tempo
Seleção do Uruguai: Batignani; Nasazzi e Uriarte; Azulgaray, Zingone e Ghierra; Naya, Mazzone, Medina, Cea e Zailo Saldombide
Palestra Italia: Primo; Bianco e Nigro; Brasileiro, Amílcar e Serafini; Coé, Heitor, Feitiço, Tatú e Tito
* Segundo os jornais uruguaios “El Día” e “El Pais”, os gols palmeirenses foram marcados por Heitor; já os tentos da Celeste teriam sido anotados por Saldombide (dois) e Mazzone, nesta ordem.
Os atletas palestrinos na excursão
Primo
Bianco
Nigro
Xingo
Amílcar
Serafim
Coé
Heitor
Martinelli
Imparato II
Azzi
Loschiavo
Gasparini
Perillo
Edoardo Mazzucchi
Números do Verdão no exterior*
315 jogos
168 vitórias
70 empates
77 derrotas
589 gols marcados
360 gols sofridos
* até 08/03/2020