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“Ele é sempre lembrado por aquela gigantesca conquista, que, sem dúvida alguma, é motivo de muito orgulho. Mas quem conhece a história dele, ou os poucos que ainda estão em vida e tiveram a oportunidade de acompanhar a sua trajetória, sabem que ele foi muito, muito mais do que o técnico do Mundial de 1951. Ventura Cambon viveu Palmeiras do dia em que chegou ao clube até o último suspiro.”

A declaração de Miro Moraes, historiador do Departamento de Acervo Histórico do Palmeiras, dá a medida da importância daquele uruguaio que chegou ao Palestra Italia como atleta em 1930 e foi funcionário do clube até morrer, em 1957. Se por um lado não há dúvidas de que o título do Torneio Internacional de Clubes Campeões obtido no dia 22 de julho de 1951 é a maior glória esportiva da carreira de Cambon, por outro há a certeza de que ele foi uma peça de grande valia durante todo um período em que o Verdão foi perseguido, teve de mudar de nome e se firmou como potência esportiva nacional.

A carteira de trabalho de Cambon teve um só empregador: Sociedade Esportiva Palmeiras (Foto: Acervo Histórico)

“A nível de Palmeiras, se não fosse ele o técnico naquela campanha do Mundial, sua relevância histórica não seria nem um pouco diminuída”, destacou Moraes. “Foi uma vida inteira dedicada ao clube. Ele chegou como jogador em 1930 e nunca mais saiu, até o último dia de sua vida. Veja: ele dirigiu a equipe principal pela última vez em 1957, mesmo ano em que veio a falecer, e inclusive, seu sepultamento foi todo organizado pela diretoria do Palmeiras, enterrado juntamente de uma bandeira do clube no Cemitério de Santana (Zona Norte da capital). Quando a diretoria do Palmeiras tomava frente dessas questões, é porque a figura da pessoa tinha muita relevância para a sua história. Foi assim também com outros ilustres personagens palmeirenses, que aliás, estão enterrados no Cemitério do Araçá, em um jazigo que o clube possui e que costumava estar disponível para aqueles que optassem por lá ficarem em sua última morada – foram os casos de João Gaveta, torcedor símbolo do clube; Romeiro, que fez o gol da final do Paulista de 1959 contra o Santos de Pelé e nos deu o título; e também de outro uruguaio de destaque na história do Palestra/Palmeiras: o ex-atacante Villadoniga. Além de que, durante todos esses anos, Cambon sempre residiu no Palmeiras, fosse dentro do próprio clube ou em alguma casa cedida pelo Verdão nas proximidades do Palestra. Para resumir: ele sempre morou, respirou e viveu Palmeiras desde que chegou até o último suspiro”, completou.

Ventura Cambon é até hoje o treinador que mais passagens acumulou no Palmeiras. Seja como efetivo ou interino, o uruguaio comandou a equipe principal em 15 momentos diferentes, totalizando 305 jogos pelo Maior Campeão do Brasil – é o quarto treinador com mais partidas na história do clube, o primeiro entre os estrangeiros. Tudo isso em 22 anos, a partir de 1935, mesma temporada em que pendurou as chuteiras e assumiu o time profissional pela primeira vez após curta passagem pelo Infantil e pelo Juvenil do Palestra Italia.

Cambon tem 305 jogos no comando do Palmeiras (Foto: Acervo Histórico)

Quando porventura deixava de ser o técnico da equipe principal, Cambon voltava à base para dirigir as equipes infantis, juvenis e aspirantes do clube, sempre sendo reconhecido por implementar filosofia de jogo e desenvolver jovens talentos. Por isso, não é nenhum exagero afirmar que ele foi um dos primeiros responsáveis pela formação de atletas na história do Palmeiras.

Cambon acumulou 179 vitórias no comando do time principal, com 58 empates e 68 derrotas. Além do Mundial de 1951, também estava no banco de reservas nas conquistas do Paulista de 1944 e das outras quatro das Cinco Coroas: Paulista de 1950, Rio-São Paulo de 1951 e Taças Cidade de São Paulo de 1950 e 1951. Indiretamente, participou das campanhas vitoriosas dos Paulistas de 1936, 1940, 1942 e 1947, do Paulista Extra de 1938 e das Taças Cidade de São Paulo de 1945 e 1946.

1928, AMOR À PRIMEIRA VISTA AOS 24 ANOS

“Imagine um jovem uruguaio de 24 anos, cheio de sonhos, que estava de passagem pela capital paulista em 1928, excursionando como atleta de uma equipe semi-amadora de seu país, o Penãrol Universitário, e tem a oportunidade de enfrentar um clube já extremamente popular. Ele viu no Palestra Italia algo que pode ser chamado de amor à primeira vista”, ilustrou Moraes.

Cambon em 1928, quando viu o Palestra pela primeira vez (Foto: Acervo Histórico)

O Peñarol Universitário-URU disputou dois amistosos contra equipes locais naquele ano. Em 29 de abril, empatou com o Palestra Italia por 2 a 2 no Parque Antarctica. No dia 1º de maio, superou o Corinthians por 2 a 1 no Parque São Jorge. Ao final da excursão, o time voltou à sua terra natal, e, junto com ele, estava Ventura Cambon, jogador que atuava na linha média e não era um gênio, mas tinha técnica, imensa vontade de vencer e uma visão de jogo privilegiada. Cambon retornou ao Uruguai, mas seu coração permaneceu no Parque Antarctica.

“Acredite: desde aquele dia, por dois anos, após trocar cartas com pessoas influentes do clube e muito insistir, ele venceu pelo cansaço e, em 1930, foi convidado para vestir o manto palestrino”, contou Moraes, que completou: “Se ligarmos alguns pontos, a história indica que, para vir ao Palestra, Cambon pode ter contado com a ajuda de um compatriota que também fez história no Palestra: Humberto Cabelli”.

Cabelli também foi jogador e, depois, um brilhante técnico do Palestra. Ambos, aliás, já se conheciam porque jogaram juntos no Peñarol Universitário-URU na segunda metade da década de 1920. Cabelli se tornou atleta do Palmeiras em 1928 – embora não se possa afirmar que ele fazia parte da equipe que naquele mesmo ano enfrentou o Palestra, já que seu nome não consta na súmula da partida, o fato de ter se integrado à equipe alviverde meses depois indica que ele já se instalara de vez no Verdão.

Cabelli é o 13º técnico que mais comandou o Palmeiras na história (105 jogos)

Já em fim de carreira, Cabelli disputou somente três partidas pelo Palmeiras, todas em 1928. O foco do uruguaio parecia ser mesmo a área técnica, pois, à época, a função de treinador estava em desenvolvimento (até o início da década de 20, era comum que os próprios capitães dos times exercessem também o comando tático dos times). Pode ter sido uma estratégia visionária de Cabelli se oferecer ao Palestra Italia como jogador e, uma vez no plantel, ganhar a confiança da diretoria para, logo, pendurar as chuteiras e avançar à área técnica. Afinal, como em diversos momentos ao longo de sua história, o Palmeiras vinha sendo um precursor nas questões técnicas, apostando na expertise de profissionais, inclusive estrangeiros, para sair à frente dos demais.

“A história se repete. Assim como podemos avaliar no futebol brasileiro hoje, naquela época a diretoria palestrina entendia que o fato de possuir uma comissão técnica ‘importada’, com uma visão estrangeira, poderia agregar ao clube taticamente, implementando, assim, nova filosofia de jogo. E não deu outra: com Cabelli, de 1930 a 1935, o Palestra iria ganhar praticamente tudo”, observou Moraes.

Cabelli integrou a comissão pela primeira vez em 1929, acompanhando à distância o trabalho de outros profissionais, como os húngaros Emeric Hirchel e Eugênio Medigyessy (conhecido como Marinetti). Em 1930, era uma espécie de auxiliar-técnico de Marinetti, comandando o time apenas em alguns jogos. E em 1931, que tinha tudo para ser o ano de Cabelli, o uruguaio não contava com o retorno de um velho ídolo da torcida que encerrara a carreira de jogador havia pouco tempo. Um nome que tinha portas abertas com a diretoria palestrina para qual fosse a função: tratava-se de Bianco Gambini, primeiro capitão e autor do primeiro gol da história do clube.

“A moral do Bianco era tanto que Cabelli, mesmo na fila para ser o treinador, precisou esperar até 1932 para se tornar o comandante principal da equipe. Mas isso não impediu de que Cabelli, assim como Marinetti, continuassem atuando na parte tática da equipe. Eles se tornaram uma espécie de auxiliares do Bianco. E, em 1932, quando Bianco, por conta própria, decide sair do clube, eles retomam o comando: primeiro, Marinetti dirige o time em uma sequência e, depois, em maio, Cabelli assume de vez, permanecendo praticamente absoluto no cargo até 1935 e conduzindo o time às expressivas conquistas daquele período”, observou Miro, citando os Paulistas de 1932, 1933 e 1934, até hoje único tricampeonato da história alviverde, além do primeiro torneio interestadual da história do futebol brasileiro, o Rio-São Paulo de 1933.

Mesmo quando ainda não era absoluto no comando da equipe, entre 1930 e 1931, Cabelli era bastante influente. E foi exatamente nesse período que Ventura Cambon chegou para atuar na linha média do Palestra Italia. Como atleta, o uruguaio atuou em 53 partidas, a maioria delas (32) em 1931, mas participou do tri paulista de 1932-33-34 e do Rio-São Paulo de 1933.

Um episódio curioso em 1932 chamou a atenção em sua carreira como jogador do Palestra. No jogo do dia 1º de maio daquele ano, um duelo amistoso com o EC Sírio, no Parque Antarctica, o então goleiro da equipe palestrina, Joel, saiu de campo lesionado – indo direto ao hospital -, aos 25 minutos de jogo. Como ainda não havia substituição naquela época, Cambon viveu um dia de goleiro, e com ele no arco, e um a menos na linha, o Palestra Italia superou o adversário por 4 a 0!

Com isso, ele faz parte do hall de jogadores que foram para a meta improvisados durante uma partida do Verdão. O fato também aconteceu com os atacantes Escurinho (1978), Gaúcho (1987) e, mais recentemente, com o meio-campista Moisés (2018).

Cambon
Circulado em verde, Cambon não sabia, mas iria terminar aquela partida do Palestra, de 1° de maio de 1932, como goleiro do duelo

Era uma época de profundas mudanças na estrutura do futebol brasileiro e do próprio clube. Em 1933, a profissão de jogador de futebol passou a ser reconhecida formalmente, gerando direitos e deveres trabalhistas aos atletas. No mesmo ano, foi inaugurada aquela que, à época, era a mais moderna praça esportiva do país: o Stadium Palestra Italia.

Cambon viveu toda essa efervescência intensamente. Tanto que só retornou a Montevidéu quase duas décadas depois, em uma das vezes nas quais voltou a assumir o comando interino do time, entre setembro de 1946 e fevereiro de 1947, quando o Palmeiras esteve em Montevidéu para a disputa de um torneio amistoso. “Saí daqui por 20 dias e estou voltando depois de 20 anos (risos). Mas nunca me arrependi disso. Sempre achei que Deus me ajudou na mudança”, comentou o treinador à imprensa local.

Cambon posado ao lado do time em outubro de 1949, no Parque Antarctica (Foto: Acervo Histórico)

Ele sempre foi um elo entre as categorias de base e as equipes profissionais, sendo um dos responsáveis, inclusive, por formar no clube alviverde ídolos como Eduardo Lima, Oberdan, Waldemar Fiume, Canhotinho entre outros, durante as décadas de 30 e 50.

Cambon assumiu o time profissional pela 8ª vez no final de 1950. O técnico argentino Jim Lopes deixou o comando da equipe palmeirense na reta decisiva do Campeonato Paulista. O São Paulo Futebol Clube mantinha três pontos de vantagem em relação ao Palmeiras e se preparava para comemorar a conquista do tricampeonato estadual.

Como num milagre, a sorte se transformou. Sob a batuta de Cambon, o Verdão não perdeu mais nenhum ponto e o São Paulo foi derrotado pelo C.A. Ypiranga e pelo Santos. Com isso, o time palmeirense retomou a dianteira com um ponto de vantagem e arrancou para o título do “Ano Santo”, ratificado diante do próprio Tricolor Paulista após empate em 1 a 1, em 28 de janeiro de 1951, naquele que ficou conhecido como o “Jogo da Lama”.

Criado em 1951, no embalo da bem sucedida primeira Copa do Mundo pós-guerra, realizada no ano anterior no próprio Brasil, o Torneio Internacional de Clubes Campeões foi a coroação da passagem de Cambon pelo Palmeiras. No comando de craques do quilate de Oberdan, Juvenal, Luiz Villa, Waldemar Fiume, Canhotinho, Liminha, Jair Rosa Pinto e Rodrigues, o treinador soube administrar os ânimos, tomou decisões corajosas (como substituir a lenda Oberdan pelo jovem Fabio Crippa na meta alviverde em plena competição) e conduziu o Verdão à maior conquista do futebol brasileiro até então.

Cambon (segundo da esq. para a dir.) em momento descontraído com seus atletas durante folga (Foto: Acervo Histórico)

As finais contra a Juventus-ITA, com vitória palmeirense por 1 a 0 no primeiro jogo e empate por 2 a 2 no segundo, entregaram ao Maracanã a alegria que lhe fora tolhida na final da Copa do Mundo, quando o Brasil perdeu para o Uruguai na grande decisão. E justamente um uruguaio foi o responsável por comandar o time que colocou o sorriso no rosto dos brasileiros.

Um dos maiores palestinos de todos os tempos, Cambon é um símbolo eterno de dedicação e fidelidade ao clube. Por mais de 20 anos seguidos, em todas as crises técnicas que derrubavam treinadores, era ele quem tomava as rédeas, acalmava a situação e entregava um ambiente pacificado a um novo comandante, voltando a cuidar dos garotos na base.

Cambon diverte seus atletas no vestiário (Foto: Acervo Histórico)

E assim foi até o final da vida. Cambon chegou moço a São Paulo, conquistou a cidade e o mundo com entrega e talento, e, com a mesma modéstia de sempre, envelheceu à serviço do Palmeiras.

No clube fundado por estrangeiros e filhos de estrangeiros, aquele uruguaio nascido em 1904 foi mais um imigrante a contribuir com o futebol brasileiro e a brilhar em defesa do Alviverde Imponente.